sábado, 8 de agosto de 2009

Kron_ib_us

Uma viagem sob o risco do real

Já pensei em defender nesta pirâmide que o ônibus é o berço natural da crônica. Nele também embarcamos sob o risco do real, que pode nos oferecer a mais desgraçada rotina ou o relato mais próximo da ficção. A segunda opção melhor representa o que os passageiros da linha 5882 vivenciaram nesta tarde de sábado, véspera do Dia dos Pais. Rodoviária agitada, fila imensa, finalmente embarcaram. Durante a viagem, enquanto surpreendidos pelo inesperado, provavelmente pensaram nas histórias que iriam contar ao alcançarem o destino final. Eu de, escreverei.

Buscando abrigo no fundo do ônibus, me deparei com a primeira situação curiosa. Negro, alto, forte, vestido no melhor da moda Oiapoque, um rapaz de cara fechada e olheiras fundas ocupava dois assentos. Sentava no limite dos dois bancos, com as pernas exageradamente abertas e abrigava ao seu lado uma pequena sacola de plástico preto de conteúdo desconhecido (por isso, suspeito). Pela ordem natural do transporte público, salvaguardadas as preferências para idosos, gestantes, mulheres com crianças no colo e obesos, eu seria o mais digno de ocupar aquele assento, pois que mais próximo dele. Precisava apenas de um "dá procê redá um poquim pra lá", e talvez tudo se resolvesse. Mas a aparência "mal encarada" daquele sujeito, que propositalmente convocava quem fosse homem bastante para movê-lo dali me retraiu. Viajei em pé, contando apenas com a ajuda da jovem que se ofereceu para carregar minha mochila.

Metade do trajeto me ocupei de pensar o porquê de eu não conseguir pedir licensa para me assentar. Será a convicção de que seu desrespeito era óbvio? Será medo da cor, roupa, e feições de meu "adversário" que tornava preferível não exergá-lo - ele nem seus dois assentos? Será o saco preto?
Mas eis que alto, forte, branco, olhos verdes escondidos atrás dos óculos escuros, um homem simplesmente avança sobre o assento, retira-lhe o saco plástico, coloca-no sobre as pernas do rapaz abusado e se espreme no lugar. Já o havia observado impaciente antes. O outro aceitou o embrulho sem queixas. Novas questões:

Eu, baixo, magro, branco, óculos de grau, tendo feito o mesmo provocaria igual conformação? Ou ainda, quem foi mais violento? O homem o bastante para devolver o rapaz ao seu lugar, ou eu que o fingi ignorar? Neguei-lhe meu pedido de licensa por temê-lo ou por não considerá-lo digno de tal cortesia?
Ali, em seu devido lugar, ele nem parecia tão assustador assim. Ao contrário, o balanço do ônibus já lhe invocava um leve cochilo. Repouso também minhas reflexões. O ônibus acabara de encontrar um obstáculo na MG-010. Um caminhão-guincho retirava alguma coisa - que depois me pareceu um outdoor queimado - da beira do asfalto. Apenas carros passavam. O único retorno possível era adentrar o bairro Jardim da Glória, uma favela para quem desconhece seu nome de batismo. O motorista decide se arriscar.
No bairro, os moradores se espantam com a passagem do ônibus lotado e desconhecido. Alguns, que bebiam em um boteco, avisam que não dá para retornar por ali. O motorista insiste. Um velho murmura um légivel "uai", as crianças acompanham o movimento do veículo, as donas de casa riem. Os passageiros começam a se sentir desconfortáveis. O ônibus se vê diante de uma ladeira muito íngrime que tanta subir, sem sucesso. Quem até então não estava se importando reclama. Uma menina que durante a viagem lia tranquila o "Amanhecer" - best-seller da série vampiro-mirim de "Crepúsculo" - se assusta: "Ai! Eu quero minha mãe!"
Os engraçadinhos aproveitam: "Ai motor, se eu for assaltado aqui no meio dessa favela cê vai ver!", outro mais espirituoso se queixa: "Ixi...Acho que peguei o ônibus errado". O burburinho aumenta. Uns pedem para descer, outros falam entre si, alguns riem, outros soltam gritinhos de sustos a cada deslize que o ônibus dá, ao morrer tentando subir as ladeiras. Na minha cabeça, só texto. Uma mulher, mais preocupada, eleva a voz em tom maternal: "Vamo ficá quieto! Desse jeito o motorista só vai ficar nervoso! Se alguém souber como é que sai daqui vai lá e faz então, uai!" e completa para o passageiro vizinho: "não é não?!"
Enfim, o ônibus decide voltar à rodovia obstruída. O caminhão-guincho terminara o serviço. Todos aplaudem. Alguns ligam para avisar do atraso. Nesse momento escuto a voz do rapaz que antes me "assustara". Durante aquele tempo havia praticamente me esquecido dele. Tudo o que escuto é uma voz pacata, de menino do interior e seus vários "sôs": "O ônibus vai atrasá, sô!", "cê já tá na casa dêl?", "vou praí então, sô!"
Tranquilo, começo a reparar na sombra do ônibus que lá fora se inclinou sobre o barranco coberto pelo capim-seco e rasteiro. Ora ela se aproxima, grande, tremendo. Ora se afasta, se estende longe, comprida no campo das fazendas às margens da rodovia. Em certo momento, parece que vai ultrapassar o próprio ônibus, mas logo se rende à condição de sombra e retorna ao ângulo reto que lhe prende ao cinza veloz do asfalto. O trajeto ordinário de não mais de cinquenta minutos durou mais de hora e meia naquela viagem até Lagoa Santa.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Meus fios

A longa história dos meus cabelos




Nos últimos meses, inicialmente por experimentação estética e posteriormente por pura falta de tempo, meus fios de cabelo atingiram proporções intoleráveis para uma família cristã-católica-provinciana-mineira. As manifestações de reprovação começaram tímidas, compreensivas, mas no último fim de semana, se voltaram firmes, odiosas, contra os fios inocentes.

Não descarto a aparência revolucionária, esquerdista, "terrorista", que meus cachos possam inspirar. Mas confesso, nenhuma das correspondências equivale à intenção. Porque não há intenção. Se meus cabelos cresceram, custa aos outros acreditarem a inexistência de uma razão ou de um porquê. Cabelos crescem, naturalmente. Se eles encolhessem, isso sim me surpreenderia.

Mas não, o que os surpreende se traduz em uma das perguntas - e vale dizer, conclusões - que fazem para mim (ou para si mesmos?): "Você deixou cabelo e barba crescerem porque quer virar jornalista?"Qualquer esforço em tentar dizer que não é inútil. A esposa de um tio comenta de seu sobrinho, jornalista, com livros publicados e tudo mais, que possui as mesmas formas capilares "espichadinhas". Ela conclui que é mal da profissão.
Um tio abusa da ironia. Diz que meus cabelos estão "lindos demaisss", para logo completar: "corta isso aí menino!". Meu pai tenta explicar. Diz que ainda não tomou nenhuma providência mais rigorosa porque o comprimento ainda está no limite do aceitável (suspeito que este limite seja tão comprido quanto eu o deixar chegar). Afirma que por enquanto o menino "não sabe o que quer da vida..." Escuto perplexo e indefeso. Qual espécie de lógica permite associar comprimento do cabelo a opções, notavelmente profissionais, de vida. Quer dizer então que cabelos aparados é sinal de compromisso com a vida? Impossível não pensar na dezena de atividades que exerço e que são totalmente relevadas pela discussão que se trava sobre meus fios.
O esposo de uma tia, este calvo e redondo, também reclama. Na sua maneira tosca de brincar, ele maldiz esse cabelo "que não sabe se é de homem ou de mulher!"Começo a pensar se é mesmo o comprimento que os incomoda a todos ou se não seria o caráter crespo de meus fios. Lisos, meus cabelos incomodariam tanto? Estão longos demais, ou negros demais? Não sei mais onde começa e onde termina o preconceito.

Raros perguntam, ou se importam, se estou bem. Se inquirem sobre os cursos é sempre o indispensável para, em alguma outra conversa, me citarem como exemplo de estudante. As Ciências Sociais, como ninguém sabe ou quer saber o que são, sempre é vista como um apoio ao jornalismo. "Isso vai te ajudar a trabalhar com televisão?", pergunta a esposa de um tio. Outra, desta vez uma prima, me toma como exemplo para seu filho que este ano tenta o vestibular: "O menino estuda de manhã, à tarde trabalha na favela, e à noite estuda também". O "trabalho na favela" trata-se, provavelmente, do Jornal da Rua, que outra tia, que me assisstiu em entrevista na TV Uni-BH, em que mencionei o projeto, deve ter divulgado entre os familiares.

Esta mesma tia me toca com sua admiração por ter me "visto na televisão". Só me pergunto se, caso não aparecesse na TV, o projeto de pesquisa que estaria desenvolvendo da mesma forma despertaria tamanho orgulho.
Voltando à raiz da questão, ou seja, meus fios capilares, penso. Tamanha reação desperta em mim uma vontade antes inexistente: a de não cortá-los. Eles adquiriram uma simbologia que agora envolve me submeter às vontades de meus familiares. Se antes, cortá-los ou não representava nenhuma diferença, hoje representa toda. Além disso, uma vontade de descobrir cada centímetro; a idéia de que me conheço da ponta de meus cabelos pra baixo e acima disso, descobertas...
Hoje reclamam do meu cabelo não curto, amanhã, do meu não casamento, dos meus não filhos, do meu não carro, da minha não casa própria. Sempre na tentativa obstinada de me prender ao mesmo "tic-tac" de seus relógios atrasados.

sábado, 7 de março de 2009

Roberto Scliar

Os leitores irão julgar se foi plágio ou inspiração.


Antes, um comunicado


Não se espantem se as atualizações se escassearem. É que o autor decidiu que, antes de atualizar o blog, precisa atualizar a si mesmo. A decisão, desta vez, não é uma estratégia de marketing. É fruto de algumas conversas com amigos. A conclusão foi unânime: é preciso ler. Não somente eu, claro. Mas qualquer um que se atreva a escrever. E como é bom se refrescar em páginas profundas! Principalmente em um verão escaldante como o nosso.

Por isso não se preocupem! Esta pirâmide ainda está distante de qualquer interesse arqueológico. Está viva e desperta em seu autor. Este, por sua vez, saciará o apetite voraz de seus leitores – declarados ou não – com textos esporádicos. Confessa que desta vez aproveitou um pequeno exercício do curso de jornalismo. Mas nem por isso, menos divertido ou digno de estar aqui. Espero.


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Troy e Gabriella - ainda não é a versão inflável.




Sexta-feira, 06 de março de 2009

O ator Zac Efron, o Troy de "High School Musical", afirmou que ganhou muitas camisinhas da mãe no último Natal (...) “Ela comprou a caixa econômica", comentou o ator (...) O comentário veio após Efron dizer que, em especulações da mídia sobre uma suposta visita dele e da namorada, Vanessa Hudges, à um sex shop...”
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u530554.shtml
***
Foi com espanto que a mãe da pequena Rebecca, de apenas 7 anos, olhou para a filha que acabava de lhe pedir camisinhas de presente. Até então, o dia corria como de costume. Rebecca acordou às 8h da manhã, trocou o pijama do “High School Musical” pelo vestido do “High School Musical”, escovou os dentes com a escova e a pasta do “High School Musical”, tomou café na caneca e no pratinho do “High School Musical” e, antes de ir para a escola com a mochila e a lancheira do “High School Musical”, assistiu ao Disney Channel, vale dizer, ao programa do “High School Musical”. Nada de errado até aí.

Mas naquela manhã, a recém alfabetizada também decidiu se aventurar pelas páginas do jornal que o pai deixara espalhado sobre a mesa. Seu interesse havia sido despertado pela foto de Zac Efron – para quem não sabe, o ator que interpreta “Troy”, um dos protagonistas dos filmes “High School Musical”. Sílaba por sílaba, Rebecca decifrava as palavras que acompanhavam a imagem do “fofo do Troy”. Estas se iniciavam com algo como “Troy ganhou muitas camisinhas da mãe no natal...”. Pronto. Era o suficiente para a pequena reclamar com a mãe o presente que havia deixado passar na carta que enviara ao Papai Noel no último dezembro.


A mãe encarou a filha, escandalizada. De onde a menina tirara aquele absurdo! Decidiu interrogá-la, podia estar se precipitando. Mas a menina parecia dominar o assunto: “é isso mesmo mãe! Eu li no jornal e sei que tem no Sex Shop e que vende daquela caixa que você sempre compra no supermercado, que tem escrito econômica, compra, vai!”. Desesperada, a mãe correu para o banheiro do casal e conferiu a caixa de preservativos do marido. De fato, estava escrito “econômica” no rótulo. Roxa de vergonha, atirou tudo na privada e, para descarregar a consciência, levou a filha ao “pet shop”, onde comprou a “camisinha” (do “High school Musical”) para a pequena poodle Lily. Tudo não passou de um erro de leitura da menina que confundiu, imaginem (!), “Sex” com “Pet”. Ou pelo menos era isso o que a mulher comentava, ao risos, com as amigas e o esposo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O vício da palavra

"...as palavras assumem corpos, iluminação e emoções..."

Até hoje, desconhecia completamente a obra de Caio Fernando Abreu e ainda hoje posso afirmar desconhecê-la. A exceção é o conto "Aqueles Dois" adaptado para os palcos pela Cia. de Teatro Luna Lunera, ao qual assisti recentemente. Com recomendações entusiasmadas dos amigos, cheguei preparado para um grande espetáculo que se cumpriu. Grandioso não quanto à cenografia, elenco ou trilha sonora, porque realmente não haveria de ser. Seu mérito está na interpretação esmerada de um olhar penetrante sobre as relações humanas, com o perdão do clichê.

A peça é ambientada em uma repartição pública, onde quatro desconhecidos são empregados. Aos poucos eles começam a se conhecer após meses de cafezinhos e animadas conversas sobre cinema. A peça, até então marcada pela reprodução do clima agitado daquele ambiente de trabalho, com seus inúmeros telefonemas, papéis, gavetas, arquivos, departamentos e o incansável teclar das máquinas de escrever assume um novo ritmo à medida em que os quatro personagens iniciam o relato acerca do relacionamento entre dois dos colegas de trabalho, Raul e Saul. Desse momento em diante, torna-se impossível distinguir quem é quem, dentre os quatro.

Mais instigante do que comentar atuação, direção ou a própria adaptação de "Aqueles dois" - tarefa que me declaro plenamente despreparado para exercer - é analisar a evolução da linguagem e do discurso na peça. A impessoalidade da repartição e a rigidez de seu aparato burocrático adentram os próprios personagens e o relacionamento que eles travam inicialmente. Envoltos em repetidos "Não há de que", "a seu dispor", "um momento, por favor", "Bom dia", "Boa tarde", "Bom fim de semana", os quatro homens não ultrapassam a função fática da linguagem. Esta só será rompida com o relato alternado entre os quatro personagens sobre o que aconteceu entre Raul e Saul. A terceira cede lugar à primeira pessoa do discurso, quando a riqueza de detalhes fornecidas pelos quatro narradores observadores não parece ser suficiente para contar o que realmente aconteceu.

Nesse ponto, as palavras assumem corpos, iluminação e emoções que vão se despindo ao longo dos atos. Até alcançarem a nudez completa, ou a escuridão total. Ao fundo do cenário, olhos sem pálpebras, sem íris podem ser facilmente preenchidos pelos olhos atentos da platéia, seus julgamentos, risos abafados, muitas vezes por pura e cruel identificação e, por fim, a decisão que lhes é legada quanto ao possível envolvimento amoroso entre Raul e Saul. Até que chega o momento em que o conforto da visão é confiscado pela ausência de luz, e o espectador é deixado sozinho. Só, então, ele percebe que Aqueles Dois são eles quatro. Ou nós todos.
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"...olhos sem pálpebras, sem íris podem ser facilmente preenchidos pelos olhos atentos da platéia..."

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Nem aqui, nem Ali

No desjejum, um texto caudaloso e polêmico para eriçar as cordas vocais dos leitores.



Foi com alegria que subi as escadas do colégio naquele sábado de novembro de 2007 para transcrever no quadro a manchete do jornal do dia: "50% das vagas da UFMG para alunos de escolas públicas". A reação dos quase cinqüenta alunos, todos em ano de vestibular e estudantes do colégio privado considerado o melhor da capital não poderia ser muito diferente. "Isso é um absurdo", "Querem destruir a qualidade das universidades federais do Brasil", "eles não vão conseguir se manter lá dentro", essas eram algumas das exclamações disparadas de todos os cantos da sala. Raros, um ou dois além de mim - inclusive uma das leitoras oficiais deste blog - se manifestaram a favor da nova medida e ousaram ir além: "Não somos contra cotas raciais". Foi o suficiente para o discurso contrário se inflamar.

Pouco mais de um ano depois, não foi com a mesma alegria que li "Não somos racistas - uma reação aos que querem nos transformar em uma nação bicolor", do diretor de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel. Ao contrário, foi com grande desconforto. Fiz questão de me livrar de qualquer preconceito quanto a origem do livro que pudesse ser em mim fomentado pelo círculo acadêmico, que muitas vezes trata com verdadeiro desdém qualquer assunto abordado pelos jornalistas. Ali Kamel não é um ignorante das questões sociais como alguns podem supor. E suas opiniões não são de todo descartáveis.

Em "Não somos racistas", ele tenta demonstrar o "despropósito" de se instituir cotas raciais no ingresso ao ensino superior brasileiro e defende, em contrapartida, a ampliação dos investimentos no ensino fundamental e médio. Lança mão de várias estatísticas e desconstrói algumas interpretações em vigor no decorrer de sua argumentação. Porém, já há algum tempo que eu aprendi a desconfiar dos números, principalmente em se tratando de uma questão de tamanha complexidade quanto as cotas raciais. A começar pela problemática da autoafimação (que fique bem claro que não defendo outro meio senão este para identificar a cor ou "raça" dos indivíduos). Mas é inegável a dificuldade de se medir cor (principalmente no Brasil).

Mas antes que eu começe a repetir essa multidão de argumentos já muito conhecidos por qualquer um que manifeste a mínima preocupação diante desse tema, é melhor partir direto para o confronto (de idéias, claro, uma vez que a segurança da Rede Globo é bastante reforçada). Ali Kamel fugiu, em suas 143 páginas de livro, de uma análise fundamental com relação a esse assunto, que é a análise histórica. Não estou falando, como costumam simplificar, de compensações, impossíveis ao meu ver, uma vez que os danos à comunidade negra inflingidos desde a captura na África ao açoite no Brasil são irreparáveis. Me refiro ao processo histórico que levou negros e pardos a assumirem as condições que, via de regra, assumem atualmente.

Entusiasta da miscigenação, Ali Kamel não poderia ter omitido a História e tampouco a referência a pensadores sociais brasileiros que se dedicaram a estudá-la. Em uma opção muito mais política do que analítica, o autor critica, de fato, somente o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, demorando-se um pouco mais em Oracy Nogueira e mencionando Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg, a quem acusa de fazerem uma "ciência engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas."

Por isso, estranha-me muito o fato de um teórico da miscigenação, como Darcy Ribeiro, não merecer nem um pé de página do livro de Kamel. Quem, mais do que ele, pode ser apontado como autor de um texto apaixonado sobre "O Povo Brasileiro" e sua formação?(Gilberto Freyre, talvez, mas este é inclusive defendido por Kamel). É impossível negar que Darcy, assim como se pretende Kamel, era um admirador desse povo e de sua miscigenação. Porém, isso não lhe fez fechar os olhos ( muito pelo contrário) para algumas verdades, como fez seu aspirante.

Kamel comete o impropério de questionar a posição de negros como inferiores a brancos no período anterior à Abolição, chegando ao cúmulo de afirmar que "a inexistência de intolerância racial tem raízes na nossa história. A verdade é que a escravidão não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos (...) uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer ao mercado de escravos, na condição de compradores...".

Em "O Povo Brasileiro", Darcy Ribeiro descreve a triste e verdadeira "carreira" dos negros no Brasil. "...Introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado às tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratada como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração, que embora melhores que a escravidão, só lhes permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço." Será que é a isso o que Ali Kamel chama de "grande mobilidade social"? Ou ele prefere acreditar que os negros forros logo se tornaram senhores de escravos?

O nosso processo de abolição foi longamente calculado pelas elites latifundiárias (brancas) para excluir a massa trabalhadora escrava de possibilidades de ascensão. Primeiro, com a Lei de Terras (1850), as elites garantiram a falta de acesso à terra pelos futuros libertos. Em 1871, com a Lei do Ventre Livre, "os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras, que já não sendo coisa suas, não sentiam mais na obrigação de alimentar". Depois foi a vez dos negros velhos e enfermos serem expulsos das fazendas. "Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica, é que se deixaram aliciar para o trabalho nas condições ditadas pelo latifúndio." As palavras de Darcy Ribeiro parecem ser ignoradas por Kamel, que prefere apontar a condição do branco opressor como invenção de pensadores brasileiros influenciados pela dicotomia marxista. E para isso, o autor ainda se utiliza das características peculiares do racismo no Brasil e de nossa composição miscigenada como modo de validar seu argumento de que aqui negros não foram nem são explorados pelos brancos.

O que ele não consegue, ou não quer entender, é que não é pelo racismo "escancarado" que os negros ocupam posições de inferioridade, nem pelas instituições constitucionalmente a-raciais, mas por um processo histórico que os apartaram, assim como aos pobres em geral, de uma democracia social, quanto mais de uma democracia racial. O fato de o preconceito no Brasil estar mais associado à classe do que á cor, e mais à cor do que a origem racial, uma das bandeiras de Kamel, também não é novidade nos estudos sobre a questão. Acontece que "não é como negros que eles operam no quadro social, mas como integrantes das camadas pobres, mobilizáveis todas por iguais aspirações de progresso econômico e social. O fato de ser negro ou mulato, entretanto, custa também um preço adicional, porque à crueza do trato desigualitário se acrescentam formas sutis ou desabridas de hostilidade', como nos lembra Darcy Ribeiro.

Por fim, Kamel ignora uma contradição que sustenta a sua defesa de que por sermos mestiços não somos nem podemos ser racistas e que fora anteriormente apontada por Darcy de forma sagaz. "A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a mestiçagem não é punida, mas louvada. Com efeito, as uniões inter-raciais aqui nunca foram tidas como crime nem pecado (...) Essa situação não chega a configurar uma democracia racial (...) porque a própria expectativa de que o negro desapareça pela mestiçagem é um racismo. Mas o certo é que contrasta muito, e contrasta para melhor, com as formas de preconceito propriamente racial que conduzem ao apartheid." Ousando mais ainda em sua análise, o autor de "O Povo Brasileiro" escreve: "É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos de tolerância que aqui se ignoram. Quem afasta o alterno e o põe à distância maior possível, admite que ele conserve, lá longe, sua identidade, continuando a ser ele mesmo (...) Nas conjunturas assimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude numa vasta escala de gradação, que quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é uma ordem natural, se não sagrada."

Kamel parte de um princípio que nega essa contradição, segundo o qual uma nação mestiça está no topo do que considera como ideal civilizatório. No meio, estariam as nações multiétnicas, onde a mistura é evitada como "antinatural". E no degrau mais baixo, as nações que se orgulham de sua pureza racial, seja ela qual for. Sinceramente, não estou tão convencido assim quanto à eficiência dessa escala eminentemente valorativa.

Viver em uma "nação misturada, miscigenada, colorida, sem espaço para diferenças de raça" é com certeza também um objetivo para mim. Mas não é por isso que terei uma visão colorida de nossa realidade atual e passada. Kamel teme que estejamos jogando fora nossos ideais e nossa "tolerância", quando da defesa de ações afirmativas. Critica o movimento negro. Prenuncia o ódio racial. Eu penso diferente. Nossas características distintivas são justamente o motivo para pensarmos que aqui cores e credos podem, algum dia, se afirmarem sem vergonha. O problema é que "algum dia" é vago demais e ações precisam ser tomadas. Nesse ponto, algumas idéias se afinam à de Kamel. Os projetos sociais devem ser melhor acompanhados e terem seus focos de ação mais seguramente definidos. Os investimentos em educação devem ser maciços (embora para mim, a relação entre dinheiro para educação e dinheiro para assistência não é tão direta quanto Kamel deixa transparecer). A criação de cotas devem acontecer, porém, de forma acompanhada, tendo sua eficiência testada e as composições da população brasileira constantemente avaliadas. (Nesse ponto, assumo esbarrar em um valor talvez essencialmente moral, antes que racional - sem negar-lhe este conteúdo).

Contudo, reconheço que as melhores intenções, sejam do diretor de jornalismo da Globo ou de um estudante e blogueiro, não são suficientes para determinar o território de custos e benefícios da política. Lá, ainda exercem o poder as mentes que quase sempre querem o melhor para si mesmas. E para as quais custo é sinônimo de voto, e benefício, de dinheiro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

RAPIDINHAS

Remoendo a não correspondência e a viagem a São Sebastião, descubri que o poeta não é de ferro, mas sim de cobre.

Não estranhe. Na tentativa de dinamizar um pouco as postagens de início de ano resolvi criar a seção rapidinhas - que não será nada fixa, aliás. A decisão foi tomada após uma longa conversa com os marqueteiros que assessoram esse blog e que me aconselharam a escrever de menos ainda que pense demais. (A decisão foi agravada após o índice zero de comentários do último post). Segundo eles [os marqueteiros], logo pesariam sobre mim acusações de comunista e anti-americano e que não pegariam nada bem para o meu futuro profissional. Aterrorizado, resolví ceder. Mas como meus escassos leitores - mais por seleção do que por desmérito meu - perceberão, a pirâmide continua não invertida.

* * *

Perdoem-me, mas os conduzirei novamente à minha breve passagem por São Sebastião há pouco mais de um mês. Ainda redundante - quanto ao tema e não quanto ao conteúdo - revelarei o que aconteceu após eu ter deixado a redação de piauí, na chuvosa manhã do dia 16 de dezembro de 2008. Visitei um conterrâneo, para atualizá-lo com a publicação. Ainda que lhe faltasse metade dos óculos, ele leu com moderado interesse. Antes que um turista gordo e seu pai se sentassem ao seu lado para encenarem o habitual papinho cabeça para a lente da câmera fotográfica, ele me pediu o exemplar. Cedi, não por pouco estimar a revista, mas por saber que outra idêntica me esperava em casa. Mas a sorte não brindou meu amigo, que foi vítima de mais um arrastão na orla de Copacabana e que não lhe poupou o presente. O pior foi que teve de assitir estático e de mãos e pernas cruzadas a essa perturbação da ordem. Por incompetência da polícia florestal e de alguns criadores (leia-se caçadores) de animais, os culpados não foram presos e ainda por cima foram vistos gorjeando tranquilamente no calçadão momentos depois do crime.
Óbvio que nada passou despercebido às minhas lentes atentas. Analisando as fotos posteriormente, percebí que já éramos observados por um dos criminosos (que aparece ao fundo da primeira foto) desde o momento em que líamos moderadamente a publicação. Observe na seqüência:

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

George Weak Bush

Sem temer retaliações do pentágono, Roberto Romero desvenda o misterioso nome do meio do presidente dos EUA.

Na foto, Weak Bush posa de bom moço ao lado das autoridades israelense e palestina no final de 2008

A Frase é ousada. Altera toda uma seqüência temporal para a qual fomos orientados. Mas se no ano de 2001 o mundo comemorou a entrada em um novo século, ao menos os estadunidenses se iludiram - e temo que talvez não tenham sido somente eles. O certo é que nossos vizinhos norte-americanos amargaram mais sete anos democraticamente ultrapassados. Só agora, há quase um decênio de século XXI, poderão eles se sentirem membros das promessas de um novo tempo.

Acuso, obviamente, o presidente George W. Bush e seu governo irresponsável que chega ao fim no próximo dia 19. Se algum jornalista se arriscar a lançar um livro-balanço de sua atuação à frente dos Estados Unidos da América, realmente não consigo me lembrar de nenhum acerto a incluir. Certamente devem ter existido, ainda que raros, mas também não subestimo o alcance de minha memória.

Foi preciso um governo que arrasasse com a economia, a sociedade e a geopolítica do país, para que os americanos enfim arriscassem um passo em direção ao novo século. Mas é igualmente ilusório pensar que o mesmo avanço que levou um negro à presidência dos EUA será capaz de reverter oito desastrosos anos, cujo desfecho não poderia ser pior.

No fim do ano passado, Bush se esforçou para convencer (a seu favor) memórias que assim como a minha fazem despencar sua popularidade. Pretendia deixar a Casa Branca como o presidente que levou paz e não guerra ao Oriente Médio. Me refiro às suas tentativas exaustivas e à forte pressão que exerceu sob Israel para assinar acordos com os palestinos. Suas atitudes nobres, entretanto, não foram suficientes para arrancar o brilho da vitória de Barack Obama nas eleições de novembro.

Incrível, portanto, como o cowboy texano abandonou facilmente as rédeas do conflito palestino nesse inicio de 2009, há poucos dias de desmontar de vez de seu cavalo branco. Sua verdadeira omissão diante da situação explosiva que novamente sacrifica os que habitam a Faixa de Gaza já contribuiu com mais de 600 mortes e 3 mil feridos.

Enquanto isso, sua secretária de Estado, Condolezza Rice, roda o mundo feito barata tonta tentando mostrar serviço. O máximo que conseguiu até agora foi o mínimo: que ajuda humanitária chegue aos flagelados de Gaza. Isso porque a concordância em cessar-fogo pelo líder da autoridade palestina, Mahmoud Abbas , não é muita coisa, uma vez que ele não exerce poder direto sobre o Hamas, grupo que ocupa Gaza.

Nesse ínterim, me impressiona (ainda) o escárnio nas atitudes de Bush que afirma cinicamente sua preocupação diante dos acontecimentos recentes. Arrisco imaginar seu sorriso amarelado cada vez que lhe vem à mente o que aguarda seu sucessor, aquele que lhe roubou a cena deixando somente a encenação. Uma crise econômica de efeitos mundiais, tropas guerreando no Iraque, mais um estopim no conflito entre israelenses e palestinos. Bush não demonstrou a mesma desenvoltura com que desvia de sapatos para lidar com esses problemas, que inclusive criou, e Obama terá mesmo de demonstrar muita raça se quiser convencer nossas memórias de que essas histórias possam ter um final feliz.