quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O vício da palavra

"...as palavras assumem corpos, iluminação e emoções..."

Até hoje, desconhecia completamente a obra de Caio Fernando Abreu e ainda hoje posso afirmar desconhecê-la. A exceção é o conto "Aqueles Dois" adaptado para os palcos pela Cia. de Teatro Luna Lunera, ao qual assisti recentemente. Com recomendações entusiasmadas dos amigos, cheguei preparado para um grande espetáculo que se cumpriu. Grandioso não quanto à cenografia, elenco ou trilha sonora, porque realmente não haveria de ser. Seu mérito está na interpretação esmerada de um olhar penetrante sobre as relações humanas, com o perdão do clichê.

A peça é ambientada em uma repartição pública, onde quatro desconhecidos são empregados. Aos poucos eles começam a se conhecer após meses de cafezinhos e animadas conversas sobre cinema. A peça, até então marcada pela reprodução do clima agitado daquele ambiente de trabalho, com seus inúmeros telefonemas, papéis, gavetas, arquivos, departamentos e o incansável teclar das máquinas de escrever assume um novo ritmo à medida em que os quatro personagens iniciam o relato acerca do relacionamento entre dois dos colegas de trabalho, Raul e Saul. Desse momento em diante, torna-se impossível distinguir quem é quem, dentre os quatro.

Mais instigante do que comentar atuação, direção ou a própria adaptação de "Aqueles dois" - tarefa que me declaro plenamente despreparado para exercer - é analisar a evolução da linguagem e do discurso na peça. A impessoalidade da repartição e a rigidez de seu aparato burocrático adentram os próprios personagens e o relacionamento que eles travam inicialmente. Envoltos em repetidos "Não há de que", "a seu dispor", "um momento, por favor", "Bom dia", "Boa tarde", "Bom fim de semana", os quatro homens não ultrapassam a função fática da linguagem. Esta só será rompida com o relato alternado entre os quatro personagens sobre o que aconteceu entre Raul e Saul. A terceira cede lugar à primeira pessoa do discurso, quando a riqueza de detalhes fornecidas pelos quatro narradores observadores não parece ser suficiente para contar o que realmente aconteceu.

Nesse ponto, as palavras assumem corpos, iluminação e emoções que vão se despindo ao longo dos atos. Até alcançarem a nudez completa, ou a escuridão total. Ao fundo do cenário, olhos sem pálpebras, sem íris podem ser facilmente preenchidos pelos olhos atentos da platéia, seus julgamentos, risos abafados, muitas vezes por pura e cruel identificação e, por fim, a decisão que lhes é legada quanto ao possível envolvimento amoroso entre Raul e Saul. Até que chega o momento em que o conforto da visão é confiscado pela ausência de luz, e o espectador é deixado sozinho. Só, então, ele percebe que Aqueles Dois são eles quatro. Ou nós todos.
.

"...olhos sem pálpebras, sem íris podem ser facilmente preenchidos pelos olhos atentos da platéia..."

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Nem aqui, nem Ali

No desjejum, um texto caudaloso e polêmico para eriçar as cordas vocais dos leitores.



Foi com alegria que subi as escadas do colégio naquele sábado de novembro de 2007 para transcrever no quadro a manchete do jornal do dia: "50% das vagas da UFMG para alunos de escolas públicas". A reação dos quase cinqüenta alunos, todos em ano de vestibular e estudantes do colégio privado considerado o melhor da capital não poderia ser muito diferente. "Isso é um absurdo", "Querem destruir a qualidade das universidades federais do Brasil", "eles não vão conseguir se manter lá dentro", essas eram algumas das exclamações disparadas de todos os cantos da sala. Raros, um ou dois além de mim - inclusive uma das leitoras oficiais deste blog - se manifestaram a favor da nova medida e ousaram ir além: "Não somos contra cotas raciais". Foi o suficiente para o discurso contrário se inflamar.

Pouco mais de um ano depois, não foi com a mesma alegria que li "Não somos racistas - uma reação aos que querem nos transformar em uma nação bicolor", do diretor de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel. Ao contrário, foi com grande desconforto. Fiz questão de me livrar de qualquer preconceito quanto a origem do livro que pudesse ser em mim fomentado pelo círculo acadêmico, que muitas vezes trata com verdadeiro desdém qualquer assunto abordado pelos jornalistas. Ali Kamel não é um ignorante das questões sociais como alguns podem supor. E suas opiniões não são de todo descartáveis.

Em "Não somos racistas", ele tenta demonstrar o "despropósito" de se instituir cotas raciais no ingresso ao ensino superior brasileiro e defende, em contrapartida, a ampliação dos investimentos no ensino fundamental e médio. Lança mão de várias estatísticas e desconstrói algumas interpretações em vigor no decorrer de sua argumentação. Porém, já há algum tempo que eu aprendi a desconfiar dos números, principalmente em se tratando de uma questão de tamanha complexidade quanto as cotas raciais. A começar pela problemática da autoafimação (que fique bem claro que não defendo outro meio senão este para identificar a cor ou "raça" dos indivíduos). Mas é inegável a dificuldade de se medir cor (principalmente no Brasil).

Mas antes que eu começe a repetir essa multidão de argumentos já muito conhecidos por qualquer um que manifeste a mínima preocupação diante desse tema, é melhor partir direto para o confronto (de idéias, claro, uma vez que a segurança da Rede Globo é bastante reforçada). Ali Kamel fugiu, em suas 143 páginas de livro, de uma análise fundamental com relação a esse assunto, que é a análise histórica. Não estou falando, como costumam simplificar, de compensações, impossíveis ao meu ver, uma vez que os danos à comunidade negra inflingidos desde a captura na África ao açoite no Brasil são irreparáveis. Me refiro ao processo histórico que levou negros e pardos a assumirem as condições que, via de regra, assumem atualmente.

Entusiasta da miscigenação, Ali Kamel não poderia ter omitido a História e tampouco a referência a pensadores sociais brasileiros que se dedicaram a estudá-la. Em uma opção muito mais política do que analítica, o autor critica, de fato, somente o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, demorando-se um pouco mais em Oracy Nogueira e mencionando Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg, a quem acusa de fazerem uma "ciência engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas."

Por isso, estranha-me muito o fato de um teórico da miscigenação, como Darcy Ribeiro, não merecer nem um pé de página do livro de Kamel. Quem, mais do que ele, pode ser apontado como autor de um texto apaixonado sobre "O Povo Brasileiro" e sua formação?(Gilberto Freyre, talvez, mas este é inclusive defendido por Kamel). É impossível negar que Darcy, assim como se pretende Kamel, era um admirador desse povo e de sua miscigenação. Porém, isso não lhe fez fechar os olhos ( muito pelo contrário) para algumas verdades, como fez seu aspirante.

Kamel comete o impropério de questionar a posição de negros como inferiores a brancos no período anterior à Abolição, chegando ao cúmulo de afirmar que "a inexistência de intolerância racial tem raízes na nossa história. A verdade é que a escravidão não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos (...) uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer ao mercado de escravos, na condição de compradores...".

Em "O Povo Brasileiro", Darcy Ribeiro descreve a triste e verdadeira "carreira" dos negros no Brasil. "...Introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado às tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratada como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração, que embora melhores que a escravidão, só lhes permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço." Será que é a isso o que Ali Kamel chama de "grande mobilidade social"? Ou ele prefere acreditar que os negros forros logo se tornaram senhores de escravos?

O nosso processo de abolição foi longamente calculado pelas elites latifundiárias (brancas) para excluir a massa trabalhadora escrava de possibilidades de ascensão. Primeiro, com a Lei de Terras (1850), as elites garantiram a falta de acesso à terra pelos futuros libertos. Em 1871, com a Lei do Ventre Livre, "os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras, que já não sendo coisa suas, não sentiam mais na obrigação de alimentar". Depois foi a vez dos negros velhos e enfermos serem expulsos das fazendas. "Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica, é que se deixaram aliciar para o trabalho nas condições ditadas pelo latifúndio." As palavras de Darcy Ribeiro parecem ser ignoradas por Kamel, que prefere apontar a condição do branco opressor como invenção de pensadores brasileiros influenciados pela dicotomia marxista. E para isso, o autor ainda se utiliza das características peculiares do racismo no Brasil e de nossa composição miscigenada como modo de validar seu argumento de que aqui negros não foram nem são explorados pelos brancos.

O que ele não consegue, ou não quer entender, é que não é pelo racismo "escancarado" que os negros ocupam posições de inferioridade, nem pelas instituições constitucionalmente a-raciais, mas por um processo histórico que os apartaram, assim como aos pobres em geral, de uma democracia social, quanto mais de uma democracia racial. O fato de o preconceito no Brasil estar mais associado à classe do que á cor, e mais à cor do que a origem racial, uma das bandeiras de Kamel, também não é novidade nos estudos sobre a questão. Acontece que "não é como negros que eles operam no quadro social, mas como integrantes das camadas pobres, mobilizáveis todas por iguais aspirações de progresso econômico e social. O fato de ser negro ou mulato, entretanto, custa também um preço adicional, porque à crueza do trato desigualitário se acrescentam formas sutis ou desabridas de hostilidade', como nos lembra Darcy Ribeiro.

Por fim, Kamel ignora uma contradição que sustenta a sua defesa de que por sermos mestiços não somos nem podemos ser racistas e que fora anteriormente apontada por Darcy de forma sagaz. "A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a mestiçagem não é punida, mas louvada. Com efeito, as uniões inter-raciais aqui nunca foram tidas como crime nem pecado (...) Essa situação não chega a configurar uma democracia racial (...) porque a própria expectativa de que o negro desapareça pela mestiçagem é um racismo. Mas o certo é que contrasta muito, e contrasta para melhor, com as formas de preconceito propriamente racial que conduzem ao apartheid." Ousando mais ainda em sua análise, o autor de "O Povo Brasileiro" escreve: "É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos de tolerância que aqui se ignoram. Quem afasta o alterno e o põe à distância maior possível, admite que ele conserve, lá longe, sua identidade, continuando a ser ele mesmo (...) Nas conjunturas assimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude numa vasta escala de gradação, que quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é uma ordem natural, se não sagrada."

Kamel parte de um princípio que nega essa contradição, segundo o qual uma nação mestiça está no topo do que considera como ideal civilizatório. No meio, estariam as nações multiétnicas, onde a mistura é evitada como "antinatural". E no degrau mais baixo, as nações que se orgulham de sua pureza racial, seja ela qual for. Sinceramente, não estou tão convencido assim quanto à eficiência dessa escala eminentemente valorativa.

Viver em uma "nação misturada, miscigenada, colorida, sem espaço para diferenças de raça" é com certeza também um objetivo para mim. Mas não é por isso que terei uma visão colorida de nossa realidade atual e passada. Kamel teme que estejamos jogando fora nossos ideais e nossa "tolerância", quando da defesa de ações afirmativas. Critica o movimento negro. Prenuncia o ódio racial. Eu penso diferente. Nossas características distintivas são justamente o motivo para pensarmos que aqui cores e credos podem, algum dia, se afirmarem sem vergonha. O problema é que "algum dia" é vago demais e ações precisam ser tomadas. Nesse ponto, algumas idéias se afinam à de Kamel. Os projetos sociais devem ser melhor acompanhados e terem seus focos de ação mais seguramente definidos. Os investimentos em educação devem ser maciços (embora para mim, a relação entre dinheiro para educação e dinheiro para assistência não é tão direta quanto Kamel deixa transparecer). A criação de cotas devem acontecer, porém, de forma acompanhada, tendo sua eficiência testada e as composições da população brasileira constantemente avaliadas. (Nesse ponto, assumo esbarrar em um valor talvez essencialmente moral, antes que racional - sem negar-lhe este conteúdo).

Contudo, reconheço que as melhores intenções, sejam do diretor de jornalismo da Globo ou de um estudante e blogueiro, não são suficientes para determinar o território de custos e benefícios da política. Lá, ainda exercem o poder as mentes que quase sempre querem o melhor para si mesmas. E para as quais custo é sinônimo de voto, e benefício, de dinheiro.