sábado, 8 de agosto de 2009

Kron_ib_us

Uma viagem sob o risco do real

Já pensei em defender nesta pirâmide que o ônibus é o berço natural da crônica. Nele também embarcamos sob o risco do real, que pode nos oferecer a mais desgraçada rotina ou o relato mais próximo da ficção. A segunda opção melhor representa o que os passageiros da linha 5882 vivenciaram nesta tarde de sábado, véspera do Dia dos Pais. Rodoviária agitada, fila imensa, finalmente embarcaram. Durante a viagem, enquanto surpreendidos pelo inesperado, provavelmente pensaram nas histórias que iriam contar ao alcançarem o destino final. Eu de, escreverei.

Buscando abrigo no fundo do ônibus, me deparei com a primeira situação curiosa. Negro, alto, forte, vestido no melhor da moda Oiapoque, um rapaz de cara fechada e olheiras fundas ocupava dois assentos. Sentava no limite dos dois bancos, com as pernas exageradamente abertas e abrigava ao seu lado uma pequena sacola de plástico preto de conteúdo desconhecido (por isso, suspeito). Pela ordem natural do transporte público, salvaguardadas as preferências para idosos, gestantes, mulheres com crianças no colo e obesos, eu seria o mais digno de ocupar aquele assento, pois que mais próximo dele. Precisava apenas de um "dá procê redá um poquim pra lá", e talvez tudo se resolvesse. Mas a aparência "mal encarada" daquele sujeito, que propositalmente convocava quem fosse homem bastante para movê-lo dali me retraiu. Viajei em pé, contando apenas com a ajuda da jovem que se ofereceu para carregar minha mochila.

Metade do trajeto me ocupei de pensar o porquê de eu não conseguir pedir licensa para me assentar. Será a convicção de que seu desrespeito era óbvio? Será medo da cor, roupa, e feições de meu "adversário" que tornava preferível não exergá-lo - ele nem seus dois assentos? Será o saco preto?
Mas eis que alto, forte, branco, olhos verdes escondidos atrás dos óculos escuros, um homem simplesmente avança sobre o assento, retira-lhe o saco plástico, coloca-no sobre as pernas do rapaz abusado e se espreme no lugar. Já o havia observado impaciente antes. O outro aceitou o embrulho sem queixas. Novas questões:

Eu, baixo, magro, branco, óculos de grau, tendo feito o mesmo provocaria igual conformação? Ou ainda, quem foi mais violento? O homem o bastante para devolver o rapaz ao seu lugar, ou eu que o fingi ignorar? Neguei-lhe meu pedido de licensa por temê-lo ou por não considerá-lo digno de tal cortesia?
Ali, em seu devido lugar, ele nem parecia tão assustador assim. Ao contrário, o balanço do ônibus já lhe invocava um leve cochilo. Repouso também minhas reflexões. O ônibus acabara de encontrar um obstáculo na MG-010. Um caminhão-guincho retirava alguma coisa - que depois me pareceu um outdoor queimado - da beira do asfalto. Apenas carros passavam. O único retorno possível era adentrar o bairro Jardim da Glória, uma favela para quem desconhece seu nome de batismo. O motorista decide se arriscar.
No bairro, os moradores se espantam com a passagem do ônibus lotado e desconhecido. Alguns, que bebiam em um boteco, avisam que não dá para retornar por ali. O motorista insiste. Um velho murmura um légivel "uai", as crianças acompanham o movimento do veículo, as donas de casa riem. Os passageiros começam a se sentir desconfortáveis. O ônibus se vê diante de uma ladeira muito íngrime que tanta subir, sem sucesso. Quem até então não estava se importando reclama. Uma menina que durante a viagem lia tranquila o "Amanhecer" - best-seller da série vampiro-mirim de "Crepúsculo" - se assusta: "Ai! Eu quero minha mãe!"
Os engraçadinhos aproveitam: "Ai motor, se eu for assaltado aqui no meio dessa favela cê vai ver!", outro mais espirituoso se queixa: "Ixi...Acho que peguei o ônibus errado". O burburinho aumenta. Uns pedem para descer, outros falam entre si, alguns riem, outros soltam gritinhos de sustos a cada deslize que o ônibus dá, ao morrer tentando subir as ladeiras. Na minha cabeça, só texto. Uma mulher, mais preocupada, eleva a voz em tom maternal: "Vamo ficá quieto! Desse jeito o motorista só vai ficar nervoso! Se alguém souber como é que sai daqui vai lá e faz então, uai!" e completa para o passageiro vizinho: "não é não?!"
Enfim, o ônibus decide voltar à rodovia obstruída. O caminhão-guincho terminara o serviço. Todos aplaudem. Alguns ligam para avisar do atraso. Nesse momento escuto a voz do rapaz que antes me "assustara". Durante aquele tempo havia praticamente me esquecido dele. Tudo o que escuto é uma voz pacata, de menino do interior e seus vários "sôs": "O ônibus vai atrasá, sô!", "cê já tá na casa dêl?", "vou praí então, sô!"
Tranquilo, começo a reparar na sombra do ônibus que lá fora se inclinou sobre o barranco coberto pelo capim-seco e rasteiro. Ora ela se aproxima, grande, tremendo. Ora se afasta, se estende longe, comprida no campo das fazendas às margens da rodovia. Em certo momento, parece que vai ultrapassar o próprio ônibus, mas logo se rende à condição de sombra e retorna ao ângulo reto que lhe prende ao cinza veloz do asfalto. O trajeto ordinário de não mais de cinquenta minutos durou mais de hora e meia naquela viagem até Lagoa Santa.